O avanço tecnológico trouxe diversas inovações para o setor financeiro, incluindo o uso de ferramentas de reconhecimento facial para validação de operações bancárias. No entanto, a implementação dessas tecnologias em processos de contratação de empréstimos consignados, especialmente para aposentados, levanta sérias questões jurídicas. E justamente sobre este ponto, abordamos a ilegalidade do uso do reconhecimento facial nesse contexto, destacando a inadequação da ferramenta para validação, principalmente quando a vítima se trata de idoso.
O reconhecimento facial é uma tecnologia de biometria que identifica indivíduos com base em suas características faciais. Bancos e instituições financeiras têm adotado essa tecnologia para validar a identidade de clientes em diversas operações, incluindo a contratação de empréstimos consignados. No entanto, a eficácia e a legalidade dessa ferramenta são questionáveis, especialmente quando aplicada a um público vulnerável, como os aposentados.
Existem estudos que apontam que a tecnologia de reconhecimento facial ainda enfrenta falhas significativas, incluindo a possibilidade de erros de identificação e de não reconhecimento. A precisão do reconhecimento facial pode ser afetada por diversos fatores, como a qualidade da imagem, iluminação, ângulo do rosto e mudanças na aparência do indivíduo (por exemplo, devido ao envelhecimento).
Especialmente para aposentados, que podem apresentar características faciais mais propensas a variações, a ferramenta de reconhecimento facial pode não ser suficientemente precisa. Isso abre brechas para fraudes, como a utilização de imagens ou vídeos manipulados para enganar o sistema, colocando em risco a segurança financeira dos aposentados.
Existe ainda o viés do golpe (engodo), onde criminosos que se passam por entregadores e sob a alegação de que precisam registrar uma foto do recebedor da mercadoria (que, na maioria das vezes não comprou) acaba por ter registrado seu rosto no celular do meliante que o utiliza para conseguir empréstimos consignados em nome da vítima idosa.
Há também a modalidade de golpe dada por pessoas que trabalham em financeiras que, de posse da lista de beneficiários do INSS, faz contato com os mesmos informando que existe um valor já liberado pera eles e que para liberação do valor, basta fazer uma “selfie”.
Dentro estes exemplos, o uso do reconhecimento facial sem o devido consentimento e transparência pode violar direitos fundamentais dos aposentados, como o direito à privacidade e à proteção de dados pessoais. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) (Lei nº 13.709/2018) estabelece que o tratamento de dados pessoais deve ser realizado com base em fundamentos legais, respeitando os direitos dos titulares.
A coleta e o processamento de dados biométricos, como o reconhecimento facial, exigem um nível elevado de proteção devido à sensibilidade dessas informações. Sem um consentimento claro e informado, o uso dessa tecnologia pode ser considerado ilegal e abusivo.
A doutrina jurídica brasileira tem discutido amplamente os limites e os desafios do uso de tecnologias de reconhecimento facial. Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “a utilização de tecnologias invasivas sem o devido controle e consentimento pode configurar uma violação ao direito fundamental à privacidade e à proteção de dados pessoais“.
Para Flávia Portella Püschel, “o reconhecimento facial, por mais que possa oferecer conveniência, deve ser analisado com cautela, considerando-se os riscos de discriminação, erro e violação de direitos fundamentais” (PÜSCHEL, 2019).
Quanto aos Tribunais brasileiros, estes já começaram a se posicionar sobre a ilegalidade do uso indiscriminado de reconhecimento facial. Já existem decisões que responsabilizam as instituições financeiras pelo uso incorreto/indevido do reconhecimento facial, argumentando que a prática, dentre outras violava os direitos dos consumidores e não oferecia segurança suficiente contra fraudes.
Apenas para demonstrar, segue breve resumo de um caso sobre o assunto:
Uma mulher ajuizou uma ação contra uma instituição financeira alegando que jamais teria feito um empréstimo consignado e que os descontos em seu benefício previdenciário estava lhe causando abalo patrimonial e extrapatrimonial e requereu para o juiz a declaração de inexistência do débito e indenização por danos morais e materiais, esta última consistente na devolução em dobro dos valores indevidamente descontados. De outro lado, a instituição financeira apresentou sua defesa, alegando dentre outras a regularidade da contratação de empréstimo consignado, com a disponibilização do valor na conta bancária da autora e sustentou a inexistência de ato ilícito, tampouco de dano moral indenizável, refutando a hipótese de responsabilidade civil.
Ao final da ação, após a análise de todos os documentos apresentados pelas partes, o juiz, após verificar o contrato assinado por meio digital, assim fundamentou:
“…… embora exista documento de contratação realizada pela plataforma digital Olé Consignado, empresa do Banco XXXX S.A., com data, hora, fotografia pessoal (selfie) e documento de identificação (fls.XX), não consta do instrumento a geolocalização, a qual seria indispensável no caso concreto para se verificar a validade da manifestação de vontade da autora”.
E para reforçar seu entendimento o juiz ainda registrou uma decisão do TJSP:
“Contrato Serviços bancários Empréstimo consignado Ação julgada improcedente Recurso da autora -Transação não reconhecida Relação de consumo caracteriza da Inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC) Contrato eletrônico através de biometria facial Apelado que não acostou aos autos o dossiê da contratação eletrônica, com indicação dos dados de geolocalização do contratante, endereço de IP, data e hora do acesso, identificação do dispositivo digital utilizado e biometria facial – Ônus do recorrido que não se desincumbiu de provar que a operação financeira foi realizada de forma lícita Declarada a inexistência do contrato Restituição do indébito devida pela forma simples – Tema nº 929 do C. STJ (EA REsp 676.608/RS) -Observância da modulação temporal dos efeitos – Dano moral configurado Fixado o valor de R$ 10.000,00 Autorizada a compensação do valor depositado na conta corrente da apelante, atualizado pela tabela prática do TJSP, sob pena de enriquecimento sem causa Ação julgada parcialmente procedente – Recurso provido em parte. (TJ-SP – AC: 10052271320228260218 Guararapes, Relator: Maia da Rocha, Data de Julgamento: 28/04/2023, 21ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/04/2023)”.
Ao final daquele processo, com as confirmações de falhas na prestação dos serviços da instituição financeira, a ação foi julgada procedente declarando a inexistência de relação jurídica e de inexigibilidade do débito e, por conseguinte, o banco foi condenado a pagar uma indenização material do valor descontado indevidamente, sendo que a restituição dos valores deveria ocorrer de forma dobrada, uma vez que estavam presentes os requisitos delineados no parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor.
À vista disso, é certo que o uso de reconhecimento facial para a realização de empréstimos consignados para aposentados apresenta sérias questões de legalidade e segurança. A tecnologia, ainda suscetível a falhas e manipulações, pode não ser adequada para validar operações financeiras sensíveis, expondo aposentados a riscos de fraude e violação de seus direitos fundamentais.
A doutrina e as decisões judiciais brasileiras reforçam a necessidade de cautela e respeito aos direitos à privacidade e proteção de dados pessoais. Até que a tecnologia de reconhecimento facial atinja um nível de precisão e segurança aceitável, seu uso deve ser evitado em operações financeiras que envolvem públicos vulneráveis, como os aposentados.
A tecnologia de reconhecimento facial, embora avançada, ainda enfrenta desafios significativos, sejam eles sobre em termos de precisão e confiabilidade ou de como são utilizados, conveniência e oportunidade. Por tais razões, a proteção dos direitos dos aposentados deve ser prioridade, e qualquer inovação tecnológica deve ser implementada de forma responsável e em conformidade com as normas legais e princípios de proteção de dados.
Por tais razões e fundamentos, a aludida tecnologia deve ser analisada, avaliada, melhorada e utilizada com parcimônia e respeito a todos os cidadãos em especial aos aposentados.
